SOLUÇÃO DE PROCESSOS EM CARTÓRIO DESAFOGA JUDICIARIO
8 de agosto de 2013BENS INCOMUNICÁVEIS – MEAÇÃO E HERANÇA
15 de agosto de 2013Cada dia mais, em todos os aspectos, intensifica-se a vida internacional das pessoas, multiplicando-se, a cada minuto, as relações privadas, ou relações de direito privado entre habitantes domiciliados nos mais diversos países, unidos por negócios internacionais, pelo casamento, pela aquisição imobiliária, pelo comércio eletrônico, entre outras hipóteses.
No entanto, a expansão e velocidade da globalização têm feito com que a concretização de diversos comandos envolvendo o direito internacional privado venha cada vez mais freqüentemente, bater às portas dos serviços extrajudiciais que, em velocidade menor, a cada dia incorpora novas funções e novo papel na instrumentalização do direito de acesso à justiça e de concretização dos direitos fundamentais e princípios constitucionais,
Nessa ótica, observar e compreender qual o papel dos notários na concretização do direito privado, inclusive no âmbito internacional, é de crucial importância não só para o desenvolvimento econômico do país em vista da melhor circulação de bens e riquezas, mas também para a compreensão de que, multiplicados diariamente os atos e negócios jurídicos envolvendo particulares de diversos países, surgem novas demandas transnacionais.
1 CIRCULAÇÃO INTERNACIONAL DE DOCUMENTOS
Para falarmos da eficácia extraterritorial dos instrumentos notariais, de acordo com Eduardo Gallino[1] precisamos falar de circulação internacional de documentos, sabendo que no mundo existem diferentes sistemas jurídicos, alguns mais próximos culturalmente, outros mais distantes.
Assevera o mesmo autor, que não é a mesma coisa falar de um sistema jurídico documental do tipo latino e de um sistema jurídico documental do tipo anglo-saxão ou, ainda, de um sistema jurídico do qual provenham documentos elaborados sob a estrutura sócio-político-cultural que nos seja totalmente estranha, sob o ponto de vista cultural, como, por exemplo, da China e outros países Asiáticos ou ainda, de direitos no mundo altamente influenciados por visões religiosas, como ocorre no Islamismo.
Deixando claro que tratamos do sistema jurídico e notariado do tipo latino e partindo para a análise do que seja “documento”, o mesmo autor concorda com o conceito que cita, de Hugo Alsina, que sustenta que “documento é simplesmente a representação objetiva de um pensamento”, cabendo nessa idéia, qualquer classificação, seja quanto à origem, seja quanto à forma do documento
Tratando especificamente do documento estrangeiro, pode-se dizer que um documento é estrangeiro quando alguns de seus elementos reais, pessoais ou de conexão se encontram em jurisdição diferente de onde foi julgado ou recebido, tendo em mente que o elemento real refere-se ao seu objeto, o elemento pessoal à nacionalidade ou domicílio do autor do documento e o de conexão ou forma, ao lugar da celebração ou da execução e, portanto, basta que um desses elementos se encontre em jurisdição estrangeira para que possamos falar na existência de um documento estrangeiro.
A partir daí, normalmente podemos classificar esses documentos em administrativos, jurisdicionais ou tipicamente notariais, sendo exemplo de documentos estrangeiros de caráter administrativo desde uma certidão comprobatória do estado civil até um diploma obtido em universidade estrangeira. Os documentos estrangeiros jurisdicionais, por sua vez, estão ligados a uma fonte jurisdicional, sendo comuns nessa categoria, as sentenças, cartas rogatórias e laudos arbitrais estrangeiros, entre outros ligados ao comércio internacional.
Especificamente quanto aos documentos notariais provenientes de estados estrangeiros, três são os aspectos a considerar: formais; processuais e substanciais ou materiais.
Aspectos formais
Para Gallino[2], quando falamos sobre a forma, do ponto de vista documental, estamos nos referindo, essencialmente, às formas extrínsecas e não à substância do negócio jurídico, ou seja, tratamos da forma quando falamos, por exemplo, que o ato deva realizar-se por escrito. Sendo exigido instrumento público ou particular, tratamos de formalidade. Também falamos de formalidade, quando a legislação exige que em um determinado instrumento público se consigne detalhes específicos acerca da capacidade das partes comparecentes, com prova atualizada do estado civil, por exemplo, ou, que baste consignar que são maiores e capazes.
Neste ponto, praticamente todos os países do mundo, segundo Gallino, adotam o princípio de direito internacional privado que se expressa no aforismo locus regit actus, ou seja, o lugar da celebração ou outorga do ato é o que rege os aspectos extrínsecos deste, que rege a forma.
Maria Helena Diniz[3] em comentário a regra, esclarece:
“[…] Há uma presunção juris tantum de validade e legalidade de ato praticado no exterior por estar revestido de todas as formalidades legais. Logo, quem contestar deverá provar a irregularidade alegada. Sob pena de tornar impossível a produção de efeitos de ato realizado num Estado em outro, paralisando as relações internacionais, será imprescindível aceitar a locus regit actum, reconhecendo a validade, sob o prisma da forma extrínseca, do ato que observou os requisitos formais ou solenidades previstas pela lei do país onde foi ultimado. […] Conseqüentemente, todo ato constituído quanto à forma extrínseca, nos termos da lei local, será válido em qualquer país.”
Já quando se exige uma formalidade essencial, como por exemplo, no Brasil – onde para constituição de direitos reais com valor superior a trinta salários mínimos, o artigo 108 do Código Civil[4] exige escritura pública – deve-se observar a forma essencial, de acordo com o artigo 9º, parágrafo primeiro, da Lei de Introdução ao Código Civil[5].
Neste caso, não importa o que diga a lei do lugar da celebração ou outorga do ato, que supostamente admite o instrumento privado para transferir direitos reais, pois quando se pretende fazer valer esse instrumento no Brasil, exige-se uma qualidade documental superior. Então, quando a forma é ad solemnitatem prevalece sobre o princípio locus regit actus.
Porém, esse princípio não é imperativo, ou seja, admite algumas exceções, como é o caso da Convenção Interamericana sobre o regime legal das procurações para serem utilizadas no exterior[6], que estabelece alguns requisitos para o reconhecimento da validade internacional das procurações lavradas em outro país, especialmente quando no Estado em que for outorgada a procuração for desconhecida a solenidade especial que se requer.
Isso acontece normalmente nos documentos/procurações outorgados nos Estados Unidos, onde em regra não existe o notariado do tipo latino, ou seja, não há a figura de um profissional do direito com fé pública para a lavratura de um instrumento público, pois o sistema jurídico por eles adotado é o anglo-saxão.
Ressalte-se, ainda, quanto ao aspecto formal, sobre o idioma de redação do documento tendo-se como regra geral que o documento notarial em qualquer país será redigido no seu próprio idioma, embora na Holanda, por exemplo, admita-se a redação do instrumento público em idioma estrangeiro, se o notário for conhecedor deste.
Para qualquer caso, porém, o documento estrangeiro para ter validade no País depende de outras formalidades internas que obedecerão a Acordos e Convenções internacionais no que se refere à legalização e/ou consularização, devendo ser traduzidos para o idioma nacional e registrados em Ofício de Registro de Títulos e Documentos[7].
Aspectos processuais
Quanto aos aspectos processuais, Gallino[8] trata dos documentos notariais estrangeiros que tenham força executiva, seja em relação à força probatória, à autenticidade e presunções ligadas diretamente ao instrumento notarial que devam gerar efeitos processuais em outro País, os quais devam ser apreciados em caráter jurisdicional que, da mesma forma devem obedecer aos aspectos formais já mencionados.
Aspectos substanciais
Por último, quanto aos aspectos substanciais ou materiais, estes se vinculam diretamente com o direito material expresso no ato notarial, que deve obedecer à legislação interna e à ordem pública internacional.
Essa percepção, na seara notarial, expandiu-se sobremaneira após a edição da Lei nº 11.441 de 04 de janeiro de 2007, que inovou ao possibilitar que os procedimentos de separação, divórcio e inventários alcançassem célere solução por meio da atuação do notário, nos casos que disciplinou[9].
Isso porque, a partir do momento em que se transferiu ao notário a tarefa de dizer qual o direito aplicável à sucessão de estrangeiro com bens imóveis localizados no país e de, efetivamente, aplicar os princípios de direito internacional privado cuja tarefa era exclusiva do Juiz, criou-se uma nova forma de acesso à Justiça e novos atores foram inseridos nesse contexto.
Nesse ponto, cumpre questionar qual a legitimidade do notário para o enfrentamento de casos dessa natureza, sob o ponto de vista de estar ele exercendo uma atividade antes exclusivamente jurisdicional, ainda que inserida nos chamados procedimentos de jurisdição voluntária, de administração da Justiça e de administração de interesses privados.
O enfrentamento dessa questão passa, necessariamente, pela análise de dois fundamentos:
O primeiro diz respeito ao direito de acesso à Justiça, concebido como transformador e oxigenador do ordenamento jurídico na medida em que exige constante reinvenção na tarefa de garantir ao cidadão a regulação de seus interesses públicos e privados, de maneira ágil e eficaz.
Para Mota[10], a expressão “acesso à justiça” é de difícil definição, pois deve abranger todos os meios a que se destina um fim, tanto a reivindicação dos direitos dos cidadãos, quanto à solução de litígios sob os auspícios do Estado. Desta forma, o sistema deve proporcionar a todos e deve ainda produzir resultados justos.
Não se pode negar que algumas leis têm sido editadas com o objetivo de solucionar esses problemas, de transpor alguns obstáculos e, conforme destaca Mota, um novo enfoque para a garantia do acesso à Justiça vem-se desenhando, que é o acesso extrajudicial, retirando do Judiciário grande parte das demandas que podem ser resolvidas, desde que de comum acordo, na presença de um órgão do Estado imparcial, neste caso, com a colaboração das serventias extrajudiciais, mais conhecidas como cartórios. (2009, p.18)
São exemplos, a Lei n° 8.560/92, a Lei n°9.514/97 e a Lei n° 10.931/2004 que, segundo ela, possibilitaram que os Tribunais ficassem restritos aos conflitos de interesse, às lides, e que, por sua vez, os cartórios extrajudiciais passassem a atuar na prevenção de litígios e na “homologação” de acordos, solucionando rapidamente os problemas. Esse fenômeno pode ser chamado de desjudicialização dos conflitos.
2 PRINCÍPIOS DO NOTARIADO LATINO
Outro aspecto de fundamental importância no que se refere à eficácia extraterritorial do instrumento notarial diz respeito ao sistema jurídico no qual esteja inserido o ato ou instrumento estrangeiro. Já dissemos que o Brasil adota o modelo de notariado do tipo latino, ou romano-germânico.
O sistema romano-germânico é o sistema jurídico mais disseminado no mundo, baseado no direito romano, tal como interpretado pelos glosadores a partir do século XI e sistematizado pelo fenômeno da codificação do direito, a partir do século XVIII. Pertencem à família romano-germânica os direitos de toda a América Latina, de toda a Europa continental, de quase toda a Ásia (exceto partes do Oriente Médio) e de cerca de metade da África.
Em diversos países de tradição romano-germânica, o direito é organizado em códigos, cujos exemplos principais são os códigos civis francês e alemão (Code Civil e Bürgerliches Gesetzbuch, respectivamente). É portanto típico deste sistema o caráter escrito do direito.
Outra característica dos direitos de tradição romano-germânica é a generalidade das normas jurídicas, que são aplicadas pelos juízes aos casos concretos. Difere, portanto, do sistema jurídico anglo-saxão (Common law), que infere normas gerais a partir de decisões judiciais proferidas a respeito de casos individuais.
O notariado do tipo latino, de tradição romano-germânica, tem se expandido gradualmente, abrangendo hoje 80 países em quatro continentes, além de algumas cidades dos Estados Unidos e Reino Unido, atingindo, por estimativas da União Internacional do Notariado Latino[14], mais de 3.000.000 de pessoas, ou seja, mais da metade da população mundial vive sob esse sistema, incluindo países que decidiram adotá-lo mesmo sem pertencer à tradição jurídica romano-germânica, como o Japão e a China.
Segundo a Oficina Permanente de Intercâmbio Notarial (O.N.P.I.)[15], a decisão dessas pujantes nações por estabelecer o sistema notarial latino em seus países – com economias de enorme peso mundial – é uma mostra da validade intrínseca deste sistema, tanto em termos jurídicos como econômicos.
Com essa perspectiva, uma reunião do notariado do tipo latino, em termos mundiais, representados pela União Internacional do Notariado Latino, organização não governamental constituída para promover, coordenar e desenvolver a função e a atividade notarial no mundo, fez nascer em 08 de novembro de 2005, a carta de princípios fundamentais do sistema do notariado do tipo latino, reconhecido pelos 80 países que o integram.
Reconhecido como instrumento de eficácia internacional entre todos esses países, os princípios fundamentais do sistema de notariado do tipo latino apregoam a função notarial independente, exercida por um profissional do direito, com atribuição de conferir autenticidade aos atos jurídicos, além de aconselhar e assessorar aos requerentes de seus serviços.
A forma de exercício em caráter privado, por delegação do Poder Público também se encontra contemplada pela Carta de Princípios, além de disposições gerais acerca da formalização dos documentos notariais, de sua organização e de princípios éticos a serem observados no exercício da profissão.
De acordo com esses princípios:
“[…] os documentos notariais que correspondam aos princípios aqui enunciados deverão ser reconhecidos em todos os Estados e produzir neles os mesmos efeitos probatórios, executivos e constitutivos de direitos e obrigações que em seu pais de origem […]”[16]
Nesse contexto, qualquer documento notarial produzido por um notário do tipo latino, respeitados os aspectos formais e substanciais antes mencionados, não pode ser questionado quanto à sua segurança e eficácia, devendo produzir todos os efeitos dele decorrentes, pela presunção de legalidade e de legitimidade a ele inerentes, bem como pela fé pública notarial.
A realidade atual, no entanto, demonstra total desconfiança quanto ao documento notarial estrangeiro, seja pela insegurança jurídica decorrente da própria globalização e da propagação de fraudes em todos os setores, seja pela falta de um canal uniforme e válido entre notários de diversos países, que geralmente ficam limitados às relações entre consulados.
Assim, o sistema notarial de cada país deve aprimorar-se e aperfeiçoar-se para acompanhar o ritmo da globalização e ser submetido a um questionamento permanente, com soluções a serem encontradas por meio de um profundo trabalho interno que aponte para o melhoramento das relações internacionais nessa seara, de modo que, respeitando suas características individuais, seja possível que em cada país, haja um grau mínimo de homogeneidade para que o documento notarial goze de igual eficácia e respeito pela comunidade internacional.
Essa confiança não deve basear-se somente nas disposições normativas, que sempre mudam em decorrência da vontade de seus governantes, mas em um valor agregado intrínseco amplamente reconhecido pela sociedade.
[1] GALLINO, Eduardo. Eficácia extraterritorial Del documento notarial (Trabajo expuesto en El I Ateneo Notarial Del Mercosur – Buenos Aires – Argentina – Septiembre 2005)
[2] Ob citada p. 02
[3] DINIZ, Maria Helena, Lei de introdução ao código civil brasileiro interpretada. São Paulo, Saraiva, 2010, p.323.
[4] Artigo 108. Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País.
[5] § 1o Destinando-se a obrigação a ser executada no Brasil e dependendo de forma essencial, será esta observada, admitidas as peculiaridades da lei estrangeira quanto aos requisitos extrínsecos do ato.
[6] Decreto nº 1.213 de 03 de agosto de 1994. Promulga a Convenção Interamericana sobre o Regime Legal das Procurações para serem utilizadas no exterior, adotada na cidade do Panamá, em 30 de janeiro de 1975, disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D1213.htm
[7] Art. 221 – Somente são admitidos registro: […] III – atos autênticos de países estrangeiros, com força de instrumento público, legalizados e traduzidos na forma da lei, e registrados no cartório do Registro de Títulos e Documentos, assim como sentenças proferidas por tribunais estrangeiros após homologação pelo Supremo Tribunal Federal;
[8] Ob. Citada, p. 08
[9] BRASIL. Lei n. 11.441, de 4 de janeiro de 2007. Altera dispositivos da Lei n. 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil, possibilitando a realização de inventário, partilha, separação consensual e divórcio consensual por via administrativa. Diário Oficial, Brasília, 05 jan. 2007
[10] MOTA, Julia Claudia Rodrigues da Cunha. As novas formas de acesso à justiça (desjudicialização). São Paulo: Faculdade Autonoma de Direito, 2009, disponível em http://bdjur.tjce.jus.br/jspui/bitstream/123456789/323/1/Disserta%c3%a 7%c3%a3o%20Julia%20Claudia%20Rodrigues%20da%20Cunha%20Mota.pdf. Acesso em 24/03/2011.
[11] HABERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e ‘procedimental’ da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002.
[12] Obra citada, p. 149
[13] Obra citada, p.42
[14] Disponível em www.uinl.org