Tratamento de Dados Pessoais – Lei 13.709/2018 – LGPD
12 de novembro de 2020Escritura por Videoconferência
6 de março de 2021
O modelo de ser humano ideal [1]
(E a proposta de interculturalidade do Equador)
A história de nosso país – de igual modo a de nossa região e inclusive do mundo, agora acentuado com a globalização – se caracteriza pelo predomínio e até pela imposição de uma só cultura hegemônica, com pretensões de universalidade. A cultura hegemônica inviabiliza e destrói as outras culturas existentes em um mesmo espaço e tempo. Os mecanismos que têm usado aqueles que detém a cultura hegemônica tem sido vários, tanto de caráter público como privado, que neste momento são magistralmente expostos por Foucault por meio de sua teoria do disciplinamento: a família, a igreja, a escola, o hospital, a prisão, entre outros, são espaços nos quais as pessoas são padronizadas em todas as suas manifestações.
A sociedade e o estado promovem sutilmente uma forma de vida e um tipo de manifestação cultural. O modelo ideal de ser humano é uma pessoa heterossexual, rodeada de uma família nuclear, que vive para satisfazer suas necessidades materiais por meio do consumo, com religião judaico-cristã, mestiça, patriarcal, individualista, urbana, profissional, proprietária e apolítica. Ao redor deste imaginário (reconheço que bastante simplificado) giram as instituições públicas e privadas.
Vejamos, como exemplo, as formas de transmissão desses valores. O patriarcal começa muito cedo na vida, inclusive antes do nascimento, e que se manifesta nas cores que identificam os sexos, o rosa para as meninas, que estariam condenadas a delicadeza e a maternidade, e o azul para os meninos, que se dedicarão a jogos e processos de conhecimento mais violentos. No campo econômico, não haverá um só programa de televisão que não tenha propaganda explícita ou sutil que sugira que a felicidade se consegue adquirindo e comprando bens que não são úteis nem saudáveis, como artigos de beleza ou bebidas cheias de açúcar e corantes. No aspecto religioso, a maioria cristã se fará sentir em cada festa escolar e em cada reunião de família. No desenvolvimento da personalidade, a moda não deixará lugar a escolhas, nem sequer a forma de vestir-se nem de transportar-se, e assim podemos ver, em todos os âmbitos da vida, uma tendência a uniformizar-se. Da mesma forma as opções de ócio e turismo, o livro que se lê, o programa que se assiste, a roupa que se veste, as opiniões que se tem, os amigos que se escolhem, os lugares que se visitam e a comida que se ingere, as ideias que se pensam e até mesmo o lugar e a forma de morrer.
Por óbvio que temos a ilusão de ser “livres” e de poder escolher alternativas distintas a cultura dominante, e efetivamente muitos o fazem. A cultura admite um grau tolerável de dissenso que o que faz é confirmar a regra da cultura dominante que Echeverría chama “momentos extraordinários no limite”.
O pior risco do estado monocultural é que a forma de manifestar a subordinação ou invisibilização de outras culturas é por meio da discriminação: quando a cultura diversa tem a ver com o indígena ou o afrodescendente, o racismo se manifesta; se é com o estrangeiro, a xenofobia; se é com a opção sexual, a homofobia; e assim com cada uma das categorias pelas quais se pode diferenciar para impedir ou restringir o exercício de direitos.
O certo é que, felizmente, existem culturas distintas da hegemônica que, em um estado e uma sociedade que não as reconhecem, resistem. As mais evidentes são as que vivem as coletividades indígenas e afrodescendentes. Estas – e outros grupos sociais que manifestam culturas distintas às hegemônicas, como aquelas de outras nacionalidades – estão atualmente subordinadas.
Quando a Constituição de 2008 estabelece que o Equador se organizará mediante um estado intercultural, está expressando com claridade duas ideias. Uma, a constatação de uma realidade que reconhece que no Equador existem culturas distintas à hegemônica; outra, uma aspiração de que todas as culturas tenham a possibilidade de desenvolver ao máximo suas potencialidades e possam compartilhar e aprender de outras culturas.
O chamado do estado intercultural não é mudar de uma cultura hegemônica para outra nem tampouco de ser simplesmente multicultural. Não se trata de considerar que as culturas hoje subordinadas sejam hegemônicas. Mas de considerar que a Constituição tenha reconhecido como um valor importante o sumak kawsay.
Nunca se pensou, desde a perspectiva oposta, quando desde a primeira Constituição se estabeleceu que para ter representação política se deve ser cidadão, que efetivamente foi uma imposição da europa ocidental excludente. O sumak kawsay é um valor e uma forma de entender a vida que, bem compreendido, sem dúvida pode ser compartilhado por qualquer pessoa ou coletividade. Assim como a dignidade é um valor ocidental digno de ser difundido e valorado, muitos valores que são promovidos pelos movimentos indígenas tem o mesmo potencial.
A interculturalidade não é multiculturalidade. Como bem o distingue Walsh, a multiculturalidade é um termo descritivo que faz referência a existência de várias culturas em uma unidade territorial e que muitas vezes convivem involuntariamente, como os imigrantes.
A noção de multiculturalidade é indiferente ao tratamento político dos grupos diversos. Cabem em um estado multicultural a promoção de uma cultura hegemônica ou a segregação de uma cultura subordinada. Ademais, o termo traz uma óbvia noção relacional: “oculta a permanência das desigualdades e iniquidades sociais que não permitem a todos os grupos relacionar-se equitativamente e participar ativamente na sociedade, deixando assim intactas as estruturas e instituições que privilegiam a uns em relação a outros”. A interculturalidade significa “o contato e intercambio entre culturas em termos equitativos, em condições de igualdade”.
Toda cultura é uma dimensão da vida humana que se reproduz a si mesma. Não existem melhores culturas ou uma “alta cultura” e outra “baixa”, que aliás, cuja distinção não é outra coisa que o reflexo de sociedades hierarquizadas e com uma forte presença de uma cultura hegemônica. Toda cultura é suscetível de mudar, melhorar e aperfeiçoar-se, no sentido de que pode oferecer melhores possibilidades para um “bem viver”. Esta “evolução” pode dar-se por autocritica, porém, especialmente por aprendizagem de outras culturas.
A cultura hegemônica pode aprender algo de culturas subordinadas? As culturas subordinadas podem aprender algo da cultura hegemônica? Sem dúvida que sim e em muitos âmbitos. Por exemplo, o individualismo e a competitividade fomentada pela cultura hegemônica global, que tem gerado tantos índices de suicídio e de dependência de drogas nos países do norte, podem aprender muito da vida comunitária e solidária de diversas comunidades indígenas. Noções como as de democracia representativa podem enriquecer-se com as formas de obter consenso nas democracias comunitárias de muitas partes da região andina. Assim mesmo, culturas indígenas podem aprender sobre as múltiplas lutas e reflexões feitas pelos movimentos feministas do ocidente e revitalizar a participação e o respeito a mulher.
Boaventura de Sousa Santos propõe uma metodologia de diálogo que denomina de “hermenêutica diatrópica”, pela qual propõe uma forma de conhecimento e enriquecimento entre as culturas. A partir deste encontro, Santos conclui, por exemplo, que existem noções de respeito a pessoa semelhantes ao que conhecemos como dignidade. O encontro entre culturas deve ser “olhando frente a frente” e não como o que chamo de “estão juntos porém de costas, um autêntico diálogo de culturas. Uma interlocução entre pares”.
A interculturalidade não é uma proposta simples e pacífica. Implica profundas transformações em todas as ordens, tanto individual privada como político estatal. A gestão da interculturalidade requer transformar todos os espaços, discursos e instituições que atualmente promovem uma cultura hegemônica, uma realidade, um modelo de vida.
Imaginemos, por um instante, como se configuraria uma família, uma escola, meios de comunicação, em estados realmente interculturais. As famílias seriam mais interétnicas, promover-se-ia distintas formas de espiritualidade, as meninas também vestir-se-iam de azul, de vez em quando cultivaríamos a terra; nas escolas existiriam indígenas e afrodescendentes, aprenderiam kichwa, comeriam cocadas nos recreios; nos hospitais encontrariam xamãs, dariam mais chás em lugar de medicamentos, escutariam mais em lugar de pedir tantos exames médicos, os meios de comunicação nos mostrariam poesia, mitos, paisagens distintas, vozes e vidas inimagináveis, promoveriam o bem viver apesar do consumismo; quiçá não existiriam prisões e todas as sanções seriam reparatórias.
A vida, sem dúvida, seria menos rotineira, mais interessante e reveladora. Tendo essa possibilidade de aprender de outras culturas, ademais olharíamos para essa realidade de exclusão, marginalização, discriminação que não queremos ver. Em um estado intercultural a opressão e a pobreza não poderiam ocultar-se nem se tolerar.
O estado intercultural não é, pois, uma palavra inocente ou noveleira. A proposta não poderá limitar-se a uma reforma legal, a incorporação de uma matéria na escola, a criação de um ministério, a uma reportagem na televisão. O estado intercultural tem um rol central na construção de uma sociedade diferente e emancipadora. A interculturalidade não pode ser imposta de cima, mas deve ser um “processo dinâmico e protetivo de criação e construção a partir das pessoas, que reconhece e enfrenta os legados coloniais ainda vivos e promove o diálogo entre lógicas, racionalidades, saberes, seres, formas de viver e mundos, que tem direito a ser diferentes”.
[1] Segundo ÁVILA SANTAMARÍA, Ramiro. El Neoconstitucionalismo Transformador. El Estado y el Derecho en la Constitución de 2008. Quito: Fundación Rosa Luxemburg. 2011. p.211-219. (Tradução livre).
DAISY EHRHARDT