ENTENDA O QUE ACONTECE AO ENCAMINHAR SUA ESCRITURA
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3 de dezembro de 2015
Mario Antonio Zinny, notário e professor argentino, em sua obra “El acto notarial (dación de fe)”, entre outros assuntos, aborda a questão da competência notarial em matéria de comportamentos ilícitos. A tradução integral da obra será publicada em breve.
No terreno da ilicitude, mais especificamente, no da ilicitude penal, o assunto da competência do notário oferece um amplo campo de estudo. Cabe perguntar-se: qual a eficácia probatória da ata notarial em sede penal? Como a valora o juiz quando mediante ela o notário narra o depoimento, a confissão ou as perícias extrajudiciais? E quando narra o próprio delito, como procede o juiz perante a ata? Valoriza-a conforme a sua sã crítica? Ou submete-se à valoração que dela tem feito o legislador, ao regulá-la como prova legal? É possível que coexistam a fé pública e a premente necessidade de alcançar a verdade real que qualifica o processo penal?
Responder a estes questionamentos exige sistematizar previamente a questão, observando que o notário pode ser requisitado para comprovar:
- o próprio comportamento ilícito;
- seus meios de prova (depoimento, confissão, pericia, indícios).
Em um ou outro caso, o comportamento ilícito pode consistir em:
- delito de ação pública;
- delito de ação dependente de iniciativa privada;
- delito de ação privada;
- comportamento ilícito não delitual, quer dizer, um comportamento apenas sancionado com a reposição das coisas ao estado anterior ou a reparação do prejuízo.
Em relação aos delitos de ação pública a competência é expressamente assinalada, entre nós, à autoridade policial.[1] De onde resulta que o notário não é competente para narrar o próprio delito nem os seus meios de prova. Disso resulta que se os narra não os dota de fé pública, podendo a ata ser valorada pelo juiz com inteira liberdade.
Mas, no que se refere aos delitos de ação privada ou dependentes de iniciativa privada,[2] é necessário distinguir. A competência do notário para dar fé do próprio delito não pode, também, ser admitida, porque quando a fé pública se estende ao delito não se mostra compatível com os princípios que regulam a valorização da prova em sede penal.[3] E reflita-se, para confirmá-lo, no absurdo a que conduziria estendê-la à injuria, no caso de não mediar isenções de imputabilidade ou culpabilidade que venham em auxílio do juiz, viria-se este obrigado a optar entre condenar ao acusado ou ao notário (e impedido então de aplicar a ambos o princípio in dubio pro reo).[4]
Claro está, além do mais, que há vezes em que a questão nem sequer se expõe, como quando o delito causa perigo para a pessoa da vítima (violação, lesões) ou o ofendido é o próprio notário (considerando que se o injuria ao dar fé). No primeiro caso só lhe corresponde auxiliar a vítima ou dar aviso imediato à autoridade (Código Penal, artigo 108); no segundo, antes de achar-se incompetente por razão da matéria, falta-lhe legitimação por ser pessoalmente interessado (Código Civil, artigo 985).
Sempre no que refere aos delitos de ação privada e dependente da iniciativa privada, cabe admitir nossa competência em tudo concernente aos meios de prova. Reconhecer nestes casos à dação de fé a plenitude de efeitos não implica vulnerar princípio processual algum. A fé pública só haverá de se estender à existência dos indícios comprovados pelo notário, ou ao fato de ter-se emitido na sua presença o depoimento, confissão ou pericia respectivos, mas em modo algum alcançará a eficácia processual desses meios de prova extrajudicialmente atingidos.
Esclareça-se ainda com um exemplo. No caso do depoimento emitido perante o notário, o juiz não é livre para decidir que o depoimento não foi emitido tal como o notário o narrou na ata, mas sim para valorizar esse depoimento extrajudicial, atribuindo-lhe, com relação ao delito, o efeito processual que sua sã crítica lhe indique. Em outras palavras: uma coisa é o efeito da dação de fé (que sujeita o juiz a acreditar na veracidade do notário) e outra, o efeito do depoimento (que exclusivamente depende da convicção do magistrado).[5]
E o caráter privado dos interesses tutelados pelas normas que exigem a denúncia ou queixa como pressuposto para o exercício da pretensão punitiva do Estado, assim como a possibilidade de que por motivos particulares se pretenda interpô-las no futuro, podem tornar conveniente a pré-constituição da prova. Neste caso, a fé pública e o segredo profissional do notário são valiosos auxiliares do agravado.[6] Bem entendido que a denúncia ou queixa, ao pôr em marcha essa pretensão punitiva, excluem daí para frente a competência notarial.
Por fim, no que respeita aos comportamentos ilícitos não delituais, cabe admitir a competência do notário para dar fé, tanto do próprio comportamento como dos seus meios de prova. E cabe admiti-la em consideração à natureza das sanções que eles originam e só tendem à reposição das coisas ao estado anterior ou a reparação do prejuízo.
De tudo isso resulta que o notário carece de competência para:
- dar fé de todo tipo de delitos;
- dar fé dos meios de prova dos delitos de ação pública;
- dar fé dos meios de prova dos delitos de ação privada e dependente de instância privada quando mediante denuncia ou querela.
Porém, basta anunciar essas conclusões para advertir que no campo dos fatos as coisas distam de serem tão simples como parecem. Como assegurar-se, por exemplo, de que manchas vermelhas cuja existência o notário deve comprovar não sejam o indício de um homicídio? Ou serão de uma lesão leve? Já houve intervenção da polícia? Resulta o estado de determinado automóvel de uma simples colisão ou do delito de dano? Será aquele cartaz de supermercado o meio empregado para consumar o delito de concorrência desleal? Como decidir no momento se a resposta do interpelado é injúria ou simples grosseria? E o prejuízo do requerente que vê evaporar a prova que tenta pré-constituir porque o notário se nega a atuar, sendo que resulta posteriormente que era competente para isso? Será o notário responsável pelo prejuízo? Será imputado a ele inclusive a omissão de seu dever de atuar?
São suficientes estes questionamentos para compreender que, em caso de dúvida, não deve o notário afastar sua possível competência para se negar a dar fé. Porém deve lavrar a ata, advertindo ao requerente que, se a incompetência se concretizar, sua intervenção não produzirá efeito (a prudência aconselha fazer constar a advertência na ata).
As notas de referência são do próprio autor e referem-se à legislação argentina.
[1]Assim, o Código de Procedimentos em Matéria Penal para a Justiça Federal e os Tribunais Ordinários da Capital e Territórios Nacionais, artigo 184: “Nos delitos públicos os funcionários da polícia terão as seguintes obrigações e faculdades: […] 3) verificar sem demora as diligencias necessárias para fazer constar as impressões ou rastros aparentes do delito […]; 5) colher as provas e demais antecedentes que possam adquirir nos momentos da execução do fato e praticar todas as diligências urgentes que se considerem necessárias para estabelecer a sua existência e determinar os culpados”. Em idêntico sentido, Código Processual Penal de Santa Fé, artigo 190-3 e 5.
[2]Conforme nosso Código Penal, artigo 72, “são ações dependentes de instância privada as que nascem dos seguintes delitos: 1) violação, estupro, rapto e abuso desonesto, quando não resultasse na morte da pessoa ofendida ou lesões das mencionadas no art. 91; 2) leões leves, sejam dolosas ou culposas. Porém, nos casos deste inciso se procederá de oficio quando meiem razões de segurança ou interesse público; 3) violação de domicílio do art. 150; 4) insolvência fraudulenta do art. 179, parágrafo 2º. Nos casos deste artigo, não se procederá a formar causa senão por acusação ou denúncia do agravado ou do seu tutor ou representantes legais. Porém, procedera-se de ofício quando um menor ou incapaz não tenha representante ou se encontre abandonado, ou quando existam interesses contrapostos entre o incapaz e o seu representante”. A continuação, o artigo 73 dispõe: “São ações privadas as que nascem dos seguintes delitos: 1) adultério; 2) calúnias e injúrias; 3) violação de segredos, exceto nos casos dos arts. 154 e 157; 4) concorrência desleal, prevista no art. 159; 5) descumprimento dos deveres de assistência familiar, quando a vítima for o cônjuge”.
[3]Conforme Código Processual Penal de Santa Fé, artigo 209 (“Na investigação não regerão as limitações estabelecidas pelas leis civis a respeito da prova, exceto as relativas ao estado civil das pessoas”) e artigo 297 (“Os juízes apreciarão o mérito da prova de acordo com os princípios da sã crítica”).
[4]Notar que essa opção que nos preocupa, a de condenar o acusado ou o notário, acontece inclusive em delitos de ação pública como o desbaratamento, quando este é provado pela escritura de compra e venda mediante a qual o vendedor desbarata o direito do adquirente por boleto. Neste caso a fé pública conduziria o juiz a optar entre condenar o vendedor ou o notário (já que só se a narração deste resultar falsa pode absolver aquele). Mas a isso cabe responder que, quando essa escritura chega ao processo penal, já não chega como escritura de compra e venda e sim como prova de delito. E como tal, nesse processo, carece de fé pública.
[5]Outro tanto ocorre nos casos da confissão e a perícia. E também nos dos indícios, nos quais o juiz não é livre para decidir que eles não existem tais como o notário os descreve na ata, mas sim para assinalar a esses indícios, extrajudicialmente comprovados, o efeito processual que corresponda.
[6]Pense-se no caso do pai da vítima de violação que decide demorar a denúncia esperando que mudem as circunstâncias que lhe fazem temer o strepitus fori.